Loucura não... Literatura; ainda que me digam ser uma
louca literatura. Começa assim: Antes de mim o sonho, que é de onde vim. Para
onde voo? Para o céu seco dessa cidade mapeada na minha cabeça em repouso na
palma da mão, ao redor de qualquer dos sóis com o nariz quase sangrando e uns
gostos comprimidos na boca. Sim, meu caso é ou pode ao menos parecer mesmo
curioso. Uma camada espessa de pré-história no ar, haja vista a grande nuvem de
pré-apocalíptica poluição que se inala nestes dias, uma droga pesada de nuvem
carregada por mim de estrondo a pairar no horizonte de eventos além do olhar;
nada mais e nadas amenos do que poeira das eras, partículas de dinossauro, ou,
tão somente, tempo em pó.
Imagine essa fauna fantástica ao redor. E eu de pijama.
Os carros, essas belas máquinas de ir dentro para frente,
filtrando em quatro rodas os grandes répteis de outrora, relançando-os na
atmosfera. Paira mesmo a própria ocasião sobre nós. Canto tanto espanto... veja
só: consumismo e objetos de apego, os diversos tamanhos de brinquedos. Um carro
ali leva uma menininha que tosse, convulsiva, segurando o seu dinossauro de
plástico. Que formidável ironia!
Sorrio um pouco disso, já satisfeito, mas não é hora
ainda de conhecer a saída.
Os automóveis são em sua maioria pretos, pratas, cinzas e
brancos. Os pombos também. Há quem diga que são nocivos à saúde do homem, mas
não me incomodam, com exceção das buzinas, que me tiram a paz. Levanto-me do
banco do parque (onde mato em legítima defesa as minhas horas de entidade
desperta, vigilante reformado que sou aqui) e ganho a rua. Pego um branco.
Menciono o destino e ele gorjeia alto, no que os demais abrem caminho, céleres,
em revoada.
Esse sonho é um daqueles que eu podia ter até acordado,
analiso.
Todos os olhos do brasileiro (pelo sotaque) que dirige se
dividem entre o para-brisa e o retrovisor a me encarar o quanto permite o
trajeto. Uso ósculos de sol redondos, espelhados, e me pergunto, mentalmente, o
que ele vê em mim. Pura reflexão? Incomodado, tiro detrás da orelha uma mecha
de cabelos e cofio a barba, idiossincrando os gestos que não tenho, e os pelos
todos que de fato tenho parecem se arrepiar sobre a cama do meu quarto, onde
devo estar a dormitar. Pergunto a ele se eu posso fumar. Ele fala baixo, ou
pensa alto: “Melhor não, já que provavelmente vai mesmo pular a parte em que
teria de me pagar pela corrida.” O que acho que ouço assim traduzido, e
respondo: “Melhor sonhar que tenho dinheiro para pagar, mas nem precisava,
porra! Que o sonho é meu, cara... Toca isso em bandeira dois, que aqui sou
deus. Até podia ir voando, mas prefiro ter classe.” Aperto o botão que faz ele
apertar o botão que abre a minha janela, automaticamente. E acendo um Lucky, achando-me com sorte. Ele liga o rádio para que uma Brigitte Bardot agonizante me
sugira à mente a couple of
acasalamentos. Pergunto se tem jazz, o que ele entende chess, dizendo que “Sim, gosto muitíssimo, mas não tenho com quem
jogar.” "Toca para outra estação", digo-lhe, no que começa a nevar. E sai Bird,
com a fumaça, pela minha janela. Ele escorrega a máquina até conseguir um roque
meio tupiniquim à esquerda e me dá seu cartão, junto com o que sobrou da minha
onça pintada. Diz “gracias”.
É hora do almoço, e meio dia é sempre verão para mim. Faz
232,7777777777778 °C.
Peço uma Original, mas não dessas de hoje, que são
cópias, e fico tomando bem devagar, de canudinho, a ler uma revista em quadrinhos enquanto demora
o meu cheese-colesterol. Estou no
quadrinho grande da penúltima página, no canto inferior direito, bem desenhado
assim colorido e de meio-perfil, que é o meu melhor ângulo, sentado no balcão
sujo a ler a última página deste mesmo gibi, e embaixo está escrito
“...continua na edição de janeiro”. Eu deveria chorar nessa parte do sonho, mas
não o faço de fato; assim mesmo a balconista me pergunta se comigo “está tudo
bem?”. “Apenas um pouco emotivo já é motivo”, respondo, marcando uma página
qualquer como se aquele decotinho estivesse me interrompendo, no que abandono a
leitura em favor do nanquim daquela pele que larga às quatro, “sim, posso
esperar”.
O que fazer enquanto isso ainda não dá naquilo?
Engulo o segundo lanche com o último gole de cerveja e
atravesso a rua em direção ao cinema. Um detalhe importante é que nisso sou
atropelado e morro, mas daí a meio cigarro já ia começar a projeção do filme, e
então me apresso mais do que gostaria. Entrego o meio cigarro que resta a um mendigo que passa
e entro na sala. Fico subitamente contente porque ir assim à sessão das duas
horas é tão bom, ainda mais às quartas-feiras, quando é mais barato e vazio,
apesar de hoje ser sexta-feira e de eu nem ter lembrado de descrever a parte da
bilheteria, motivo pelo qual analiso que nem devo ter pagado a entrada. O filme é... deixe-me
pensar... alguma coisa que nunca vi na vida, talvez um Fellini novo... não...
um Fellini de 1964, quando ele não lançou nada, afinal; um Fellini entre o 8 ½
e o Julieta dos Espíritos... sim... um filme genial esse Sonhar com Davi, que
conta o último pesadelo tido pela cabeça decapitada de Golias, coitado... tem um macarrônico toque de Proust e tal; mas o melhor é que tem simultaneamente Masina e
Mastroianni no elenco. Recomendo. Duas horas depois, saio do cinema com um sorriso e pego de volta aquela minha ponta de cigarro que havia deixado o
mendigo fumar, pelo que ele ganhou um real, logicamente.
É quando a gente percebe que está sujeito a tudo nessa
puta vida.
Começo a sentir as propriedades diuréticas da cerveja, da
qual preciso urgentemente me aliviar, o que não faço em qualquer lugar, a menos
que isso seja absolutamente necessário. Como é conveniente, procuro ir ao
banheiro da lanchonete, mas está ocupado; aí volto ao cinema, onde há fila.
Nada mais ao redor... procuro e não encontro nenhum lugar para mijar. Então
você me dirá que “faça na rua mesmo, escondidinho, porque homem é assim e faz em
qualquer lugar". Você entende e as pessoas na rua entenderiam também, certo? Mas
não é tão simples, senão qual seria a graça de eu estar te contando isso? Digo
que fazer num muro ou poste foi a última coisa na qual pensei. Cheguei a
cogitar em por o pau para fora ali na esquina e fazer uma performance quando o
farol fechasse, mijando para cima e bebendo, ato contínuo, mas a presença ostensiva de
policiamento nesse dias de pagamento (era uma região com muitos bancos) me
inibiu, já que eu poderia ser preso por atentado violento ao pudor, à moral e aos bons
costumes, bem como estar incorrendo em crime passível de punição até mesmo
pela vigilância sanitária, além do fato de que ainda não tenho licença para ser
artista. O que eu faço, então? Vou até o banheiro daqui de casa, no meu quarto
mesmo, que convenientemente é uma suíte, justamente para ocasiões como essa.
Aí, antes que você ache que trapaceei, escrevo aqui uma
nota autobiográfica, a título de informação, para me justificar: o autor é
sonâmbulo.
Então, já que estou ali, aproveito para escovar os
dentes, passar desodorante e pentear os cabelos. Como se trata de um sonho, e
não de um pesadelo, não estou com espinhas. Volto a me deitar, preparado para
ir para a cama com a garçonete. Saindo do trabalho, ela quer ver um filme, e logo
o mesmo que vi, mas consigo convencê-la, após explicações demoradas, de que o
tal filme é de minha autoria, o que me tornaria não tão bem-vindo ali.
Recomendando-me fazer análise, ela aceita o programa que proponho. Quinze
minutos depois, estou no banco de trás do taxi do J. C. Merrick (aquele
brasileiro), com a Vénus noire me
chupando, a caminho de um motel.
Sonho meu, né!?
Chegando lá, só era possível entrar de carro, já que
Jeanne é moça de respeito e tem muita vergonha de ser vista nessa situação a pé.
Sendo assim, tivemos de entrar os três. Eu estava pagando a corrida, em
bandeira dois ainda, mas, não contente, J. C. propôs ir conosco até o quarto,
uma proposta da qual mui humilde e heterossexualmente declinei. Ao invés disso,
propus a ele que fosse em meu lugar, pelo que me pagaria bandeira dois. Jeanne
protestou, mas aceitou fazê-lo desde que recebesse de mim por isso, para o que
combinamos bandeira um. E assim, para encurtar a história, passei a noite toda
ouvindo big bands no carro, a fazer planos para expandir o recém descoberto
nicho de mercado, o da cafetinagem com taxímetro e, para encerrar, digo que
acordei sem o dinheiro do negócio no bolso do pijama, o que é um dos principais
riscos dessa moderna profissão, mas ainda assim pretendo investir no ramo.
O dia amanhecia e eu precisava pedir as contas no serviço
para ter o capital necessário.
Meu chefe não quis acreditar, chamando-me de louco. E, só
para me sacanear, me demitiu por justa causa, recomendando-me um exame da
cabeça, com o que o presidente do meu sindicato e o juiz responsável pelo meu
processo trabalhista também concordaram. Nenhum advogado quis me defender, e a
minha autodefesa inexperiente não foi suficiente para me livrar do hospício, ainda
mais após o resultado dos exames ter servido de prova principal da acusação no
meu caso. Pois é... Hoje, 15 de dezembro de 2010 é meu aniversário de 31 anos e
aqui estou. O que posso dizer? Sou muito bem sucedido e realizado nessa
profissão que exerço durante oito horas por dia, como qualquer bom cidadão,
ainda que ela seja ilegal e considerada nociva à sociedade, pelo que eu mesmo
me sinto também um pouco em dívida, motivo pelo qual escrevo poemas e outros
textos, como este, que publico de graça aqui, apenas para o deleite dos meus
colegas de diagnóstico, que como eu também se declaram inocentes. E todos têm
razão.
Caramba Davi, parabéns!!!! Que incrível seu blog... Seus textos, incrível mesmo eu adorei... Parabéns... Suas palavras são tocantes... São deliciosas e saborosas, parabéns mesmo!!!!
ResponderExcluirAbraços, Mariane.
Muito obrigado. Seja bem-vinda.
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